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Bolso sente Crise Hídrica
09/11/2021

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A água cobre 75% do planeta Terra. É indispensável para manter toda forma de vida. Porém, a escassez desse recurso natural, consequência, em parte, das mudanças climáticas, pode levar o ecossistema ambiental a um desequilíbrio nos ciclos de chuva sem precedentes. É o que mostra um estudo liderado pelo cientista climático Wim Thiery, da Vrije Universiteit Brussels, da Bélgica. Segundo a pesquisa, divulgada na revista Science, uma criança nascida em 2021 viverá, em média, sete vezes mais ondas de calor, duas vezes mais incêndios florestais e quase três vezes mais secas, quebras de safra e enchentes de rios do que seus avós.
Os reflexos dessa conjuntura atingem as esferas ambiental, social e econômica. Esta ciranda também começa nos setores produtivos e chega ao consumidor, que vem sentindo o peso nos boletos. A escalada nos preços de produtos e serviços tem exigido de boa parte da população uma "ginástica" para assegurar os suprimentos à mesa. O presidente da Associação Gaúcha de Supermercados (AGAS), Antônio Cesa Longo, afirma que está percebendo um consumidor com poder de compra minorado. “Os impactos da crise hídrica, bem como outros aumentos nos custos dos produtos advindos da situação cambial, da alta do diesel e de outras situações, refletem diretamente na mesa do consumidor, que está dando verdadeiras aulas de gestão no dia a dia para diminuir o impacto da inflação em sua cesta de compras”, informa.
O professor da Escola de Negócios da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Gustavo Inácio de Moraes, salienta que a ocorrência de secas e de estiagens tem se tornado mais frequente na Região Sul e em São Paulo, cenário influenciado por vários fatores, como a dependência da Amazônia, que, por ser uma floresta tropical úmida, produz corredores de chuva, ou rios voadores, que determinam o comportamento hídrico no sul do continente sul-americano. “À proporção em que ocorre um desmatamento significativo na área, pode-se correlacionar com a ausência e mudança do regime de chuvas nas áreas ao sul.”
Moraes reforça que os efeitos na sociedade aparecem no fornecimento de serviços de utilidade pública, como água e energia, que dependem dos níveis dos reservatórios, que podem ser alterados em função da estiagem. “Energia e água, como insumos básicos de atividades dos serviços e da indústria, prejudicam os investimentos, pois há uma menor disposição de se investir em ampliação de equipamentos, bem como o próprio consumo das famílias e empresas, por encarecer e dar maior peso às despesas básicas, inviabilizando lazer e bens.” O especialista ainda destaca que a falta de água reduz a oferta de produtos em todos os setores, o que resulta no aumento da inflação.
No bolso do consumidor
Segundo o pesquisador e agrometeorologista da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa-Trigo) Gilberto Cunha, a crise hídrica pode ser considerada uma perturbação, uma alteração de padrão normal dos recursos hídricos com consequências econômicas nos setores produtivos e energéticos e com impacto na sociedade. “Toda crise hídrica começa a partir de uma escassez de água, mas não são sinônimos”, ressalta, enfatizando que a gestão dos recursos naturais também deve ser contemplada neste contexto. Cunha entende que, no momento, o Rio Grande do Sul não passa por crise hídrica, sendo que já houve maior risco para esse cenário no outono e no inverno. “Em setembro, tivemos retorno gradativo das chuvas, que favoreceu a recuperação substancial de mananciais de água.” Já as regiões Sudeste e Centro-Oeste passam por seca severa, o que acaba atingindo o Sul. Apesar das ameaças, o especialista vê oportunidades em um período crítico. “A inovação e a busca por novas formas de energia, como a eólica e solar, e também a de biomassa, o que conduz a uma amplificação das matrizes energéticas, o que vejo como aspecto positivo”, assinala.
O coordenador estadual da área de saneamento básico da gerência técnica da Emater/RS, Gabriel Ludwig Katz, caracteriza a crise hídrica pela conjunção de vários fenômenos que ocorrem simultaneamente. “É a escassez de chuvas associada à má distribuição pluviométrica, a redução dos níveis de águas dos rios e de poços, fatores que juntos atingem a economia.” Katz reforça que a população mais vulnerável é a mais atingida. “São comunidades indígenas, quilombolas, assentados que vivem em condições críticas de saneamento, além da questão de higiene.”
A meteorologista da Metsul Estael Sias destaca que todas as áreas da sociedade acabam sendo impactadas. “A vida se torna mais cara na medida em que precisa recorrer a artifícios para manter o conforto em dias de calor intenso e há perda agrícola diante de tantas quebras de safra por falta de chuva ou por geada mais forte”, enfatiza. Sias acrescenta que um estudo recente da MetSul verificou significativo aumento de chuva forte desde a década de 1990, quando a temperatura global começou a ficar acima da média. A partir desse período, todos os anos foram mais quentes que o normal, sendo que na última década quebrou recordes, o que explica essa instabilidade no clima. “Vários eventos que ocorrem a cada mil anos aconteceram nos últimos dois anos em diversas partes do mundo, o que denota uma evidência que o clima está tendendo para extremos”, esclarece.
O economista da Fundação Getúlio Vargas, André Braz, afirma que a crise hídrica atinge muitos segmentos, como a agricultura, que teve quebra de safra de milho, cana de açúcar e café. “Do milho, afeta parte dos alimentos, principalmente a criação de aves, que encarece a carne de frango e de ovos”, explica. O presidente executivo da Associação Gaúcha de Avicultura (Asgav), José Eduardo dos Santos, reitera que a quebra de safra do milho gaúcho potencializou a falta no Estado que já é insuficiente, o que ocasionou a vinda do cereal do Centro-Oeste e Argentina, tornando toda essa logística muito onerosa para o avicultor, já que o milho é o principal insumo para fabricar ração para aves. “Para o produtor conseguir se manter na atividade, foi preciso repassar parte do custo para o consumidor.”
Santos assinala que a carne de frango e os ovos tiveram aumento que acompanhou os níveis de inflação. Todavia, esse cenário apresenta perspectivas de mudanças. “Foi publicada a medida provisória que isenta a cobrança de PIS e Cofins sobre importação do milho até 31 de dezembro de 2021, o que deve dar um alívio”, relata. Mas as dificuldades podem ser a motivação que precisava para a criação de novas possibilidades. “Vamos produzir alimentos para as aves a partir dos cereais de inverno, um projeto que está tomando corpo para se conseguir normalizar os preços para o consumidor em curto prazo”, salienta.
Na suinocultura, a situação é semelhante a da avicultura. O presidente da Associação de Criadores de Suínos do Rio Grande do Sul (Acsurs), Valdecir Luis Folador, afirma que nos 30 anos em que está diretamente envolvido na atividade, vem acompanhando muitas mudanças climáticas, que contribuíram para a alta nos custos de produção. “Com essa instabilidade climática, além da parte de alimentação que vem encarecendo, temos que investir mais nas granjas para ter mais conforto térmico para os animais”, explica. Folador ressalta que o desafio é se adaptar em meio a uma viabilidade econômica cada vez mais “apertada”.
O prejuízo nas lavouras de cana-de-açúcar, que é matéria-prima do açúcar, do etanol e do álcool anidro, afetou os preços dos produtos. O álcool anidro forma 27,5% da gasolina tipo C, usada para abastecer os veículos, colaborou para a escalada de preços da gasolina, que chegou a R$ 7,00 nas bombas nos posto de combustível. “O setor sucroalcooleiro afetou a parte da produção de açúcar e etanol, o que consequentemente afeta a gasolina.”
Braz enfatiza que a falta de chuvas prejudica as pastagens do Brasil, o que interfere na pecuária brasileira. “No país, o gado é criado solto a pasto, manejo que fica comprometido pela falta de chuva, o que pode aumentar o preço da carne e do leite”, avalia. Segundo o coordenador do Núcleo de Estudos em Sistemas de Produção de Bovinos de Corte e Cadeia Produtiva (NESPro), Júlio Barcellos, a produção animal no Brasil se dá a partir de pastos naturais ou cultivados, sendo ambos extremamente dependentes da condições climáticas de luminosidade, umidade do solo e da temperatura, o que determina o ciclo do crescimento ao longo das estações do ano. “De maneira geral, sempre que houver um déficit hídrico, os pastos crescem menos, a produtividade e os ganhos de peso diminuem assim como todos os parâmetros produtivos.”
Com a queda de produtividade e uma menor oferta, o RS tem a opção de adquirir carne de outros estados. “Se a carne comprada estiver cara, vai ter um preço mais alto repassado ao consumidor para fins de compensação”, explica. Essa alta contribuiu para a redução do item carne na panela, conforme indicado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), que apontou a carne bovina teve aumento de 35%, o que se converteu na menor taxa de consumo em 25 anos no país, conforme dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).
O leite também teve alta expressiva, chegando a passar de R$ 4,00 o preço do litro vendido em caixa. Segundo o subsecretário do Sindicato da Indústria de Laticínios do Rio Grande do Sul (Sindilat), Darlan Palharini, o aumento da luz impactou o preço do leite porque por causa dos custos da energia usada para o funcionamento do sistema produtivo.
Mais cautela e economia
Diante da alta dos preços, para muitos, a carne passou a ser artigo de luxo. No Mercado Público, no centro de Porto Alegre, essa realidade, que enxugou o poder de compra do consumidor, é visível. Na banca de carnes, Eva Marina Pereira, de 58 anos, reage ao preço dos itens. “É um absurdo”, expressa. Aposentada por invalidez, ela sustenta sozinha uma família de seis pessoas com o salário da aposentadoria. Com o aumento de preço, ela teve que fazer um corte drástico no consumo dessa proteína animal. “Hoje comemos mais arroz e feijão e carne duas vezes por mês”, comenta. Agora, a compra de carne está condicionada às ofertas. “Hoje estou levando uma paleta de porco que está na promoção.”
A química Rose da Rosa, de 65 anos, também adaptou o cardápio da família. “Todos gostamos de carne bovina, mas hoje comemos de duas a três vezes por semana”, relata. A autônoma Dani Roberta Menezes Cardoso, de 48 anos, observa os preços do queijo que compra para a mãe. Ela mantém sozinha uma família de cinco pessoas. A subida do queijo, que chegou a passar de R$ 50,00 o quilo, provocou alteração nos hábitos de consumo. “Não gosto muito de queijo, mas a minha mãe, sim, por isso compro, mas em torno de duas vezes ao mês”, comenta.
O supervisor administrativo Gilberto Silva da Silva, de 48 anos, sustenta a família de cinco pessoas, sendo quatro adultos e uma criança de 9 anos. Morador do bairro Camaquã, em Porto Alegre, Silva destaca que sempre foi bastante organizado com as despesas da casa. Agora, com a alta simultânea de alimentos, luz e combustível, algumas adaptações foram implementadas. “Locais que são mais próximos da minha casa eu vou sem carro”, relata. Quanto à alimentação, destaca que faz questão de manter o consumo normal, preferindo economizar em outros aspectos. “Não gosto de desperdício e procuramos sempre reaproveitar os alimentos, seja para consumo próprio, seja para doação”, descreve. O maior cuidado que Silva exige da família é quanto ao consumo de luz. “Quando sai do cômodo, tem que apagar a luz, e o banho está mais controlado”, reforça.

Pouca água, luz cara
O sistema de produção energética do Brasil é interligado. A matriz predominante é formada por usinas hidrelétricas, que correspondem a uma média que oscila entre 50% a 60% (conforme os níveis de água dos reservatórios), seguida das termelétricas, em média 30%, e eólica, que representa em torno de 14%. A relação entre o volume de água e a produção energética pela rede de hidrelétricas é direta. O coordenador do Laboratório de Eficiência Energética da PUCRS e do curso de Engenharia Elétrica da Escola Politécnica, Odilon Duarte, explica que, quando há períodos de seca, os rios perdem volume e os reservatórios baixam, diminuindo a força da queda d’água. As turbinas então passam a girar mais lentamente, sem força suficiente para gerar a energia elétrica necessária para suprir a demanda das cidades e regiões que abastece. Assim, é necessário acionar as termoelétricas, que produzem uma energia mais cara. “Com o acionamento das termoelétricas, a conta de energia elétrica para o consumidor acaba ficando mais cara, já que o custo da geração de energia e de construção da usina é mais alto”.

Abastecimento
O diretor de Operações da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan), André Finamor, explica que a companhia atende 317 dos 498 municípios gaúchos e que o momento atual é de continuidade da crise hídrica. “Em 2019 começou uma forte crise hídrica, que se agravou em 2020 e segue persistente em 2021”, avalia. Finamor destaca que desde 2019 nenhum dos locais abastecidos pela Corsan passaram por racionamento de água. “Temos um planejamento de prevenção para atender o aumento de população ou de falta de água, que já começa na construção das barragens e na escolha dos rios”, esclarece. Para isso, as melhorias estão concentradas na estrutura. “Investimos pesado nas áreas de operações para tratar esse alto volume de água bruta, como preservação dos mananciais e redimensionamento e desassoreamento de barragens.”
Na área rural, o coordenador estadual da área de saneamento básico da gerência técnica da Emater/RS, Gabriel Ludwig Katz, reitera que o foco está na prevenção estabelecida em políticas públicas implementadas por meio da Secretaria da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural do RS. “São medidas como a construção de açudes, de cisternas e reutilização da água de nascentes”, exemplifica. Katz reforça que é necessário melhorar as condições ambientais dentro das propriedades, o que perpassa o processo de educação ambiental dos produtores.

 

Fonte: Jornal Correio do Povo